Articulistas

Amoris laetitia e Catecismo da Igreja Católica – 3 perguntas e respostas

por Pastoral Familiar, 27 de dezembro de 2021, 0 Comentários(s)

Luís Eugênio Sanábio e Souza
escritor católico

PERGUNTA Nº 1: Os parágrafos 1650 e 1665 do Catecismo da Igreja Católica sustentam a impossibilidade de comunhão eucarística para os divorciados recasados ainda em vida do legítimo cônjuge. O Compêndio do Catecismo também reafirmou que “eles não podem receber a absolvição sacramental nem abeirar-se da comunhão eucarística, nem exercer certas responsabilidades eclesiais enquanto perdurar esta situação, que objetivamente contrasta com a lei de Deus” (nº 349). Considerando o elevado grau de autoridade destes documentos magisteriais que permanecem em vigor (Catecismo e seu Compêndio), como se deve interpretar e compreender as considerações da Exortação Amoris laetitia diante destas normas universais do Catecismo?

RESPOSTA / LUÍS EUGÊNIO:   

O Papa Francisco não aboliu e nem alterou a norma geral da Igreja que impede a comunhão eucarística dos recasados, mas quis refletir sobre os graus de culpabilidade pessoal que podem variar de acordo com certas circunstâncias.   Neste sentido, o Papa quis citar o parágrafo 1735 do Catecismo que explica que  “a imputabilidade e responsabilidade dum ato podem ser diminuídas, e até anuladas, pela ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as afeições desordenadas e outros fatores psíquicos ou sociais”.   “Por esta razão, um juízo negativo sobre uma situação objetiva não implica um juízo sobre a imputabilidade ou a culpabilidade da pessoa envolvida” (Amoris laetitia nº 302).

Parece-me que algumas pessoas (clérigos e leigos) não compreenderam bem o fato de que, sem violar ou alterar as normas da Igreja, o Papa Francisco quis chamar a atenção para esta distinção que a Igreja faz entre a irregularidade objetiva e os graus de culpabilidade pessoal.  Contudo, não se trata de uma novidade pastoral,  pois o próprio Papa afirmou que “a Igreja possui uma sólida reflexão sobre os condicionamentos e as circunstâncias atenuantes” (Amoris laetitia nº 301).  Vejamos, por exemplo, a antiga questão do aborto.  Segundo o Direito Canônico, quem provoca aborto incorre em excomunhão automática (cânon 1398).  Contudo, por causa das circunstâncias atenuantes (medo, pressões psicológicas e etc)  grande parte das pessoas que provocam aborto não são excomungadas, segundo as considerações daquele outro cânon 1324 § 1, 3 e 5.    Nota-se que este último cânon não aboliu a norma da excomunhão do cânon 1398, mas considerou que o crime por si só (aborto) não implica necessariamente em uma culpabilidade plena.   Voltando à questão dos recasados, pode-se dizer que em linha de princípio eles não podem comungar e, neste sentido, as normas do Catecismo não foram alteradas  (nºs 1650 e 1665),  mas isso não implica em dizer que “todos os que estão em situação chamada “irregular” vivem em estado de pecado mortal, privados da graça santificante” (Amoris laetitia nº 301).

PERGUNTA Nº 2: Como, na prática pastoral, pode-se identificar aqueles casos irregulares em que seria viável oferecer a comunhão sacramental?

RESPOSTA / LUÍS EUGÊNIO: 

Não foi estabelecida nenhuma norma universal ou critério específico para tal identificação, como explicou o Papa na Amoris laetitia (nº 300). Caberá aos sacerdotes em comunhão com seus respectivos bispos acompanhar cada caso e isso com a devida prudência para não levar a comunidade a pensar que existem pessoas que podem obter privilégios sacramentais ou que a Igreja sustente uma moral dupla (Amoris laetitia nº 300). Segundo o Papa, “aquilo que faz parte dum discernimento prático duma situação particular não pode ser elevado à categoria de norma. Isto não só geraria uma casuística insuportável, mas também colocaria em risco os valores que se devem preservar com particular cuidado” (Amoris laetitia nº 304). Vale também lembrar a distinção feita pelo Papa Francisco entre a “lei da gradualidade” e a inexistente “gradualidade da lei”. Ele escreveu assim: “São João Paulo II propunha a chamada “lei da gradualidade”, ciente de que o ser humano conhece, ama e cumpre o bem moral segundo diversas etapas de crescimento.  Não é uma “gradualidade da lei”, mas uma gradualidade no exercício prudencial dos atos livres em sujeitos que não estão em condições de compreender, apreciar oupraticar plenamente as exigências objectivas da lei. Com efeito, também a lei é dom de Deus, que indica o caminho; um dom para todos sem exceção, que se pode viver com a força da graça, embora cada ser humano avance gradualmente com a progressiva integração dos dons de Deus e das exigências do seu amor definitivo e absoluto em toda a vida pessoal e social”  (Amoris laetitia nº 295)

PERGUNTA  Nº 3 : Na sua opinião, qual foi o avanço pastoral que a Amoris laetitia apresentou para esta questão dos recasados?

RESPOSTA / LUÍS EUGÊNIO: 

Embora esta reflexão sobre a relação entre a lei objetiva com a condição subjetiva tenha sido exposta no passado pela Igreja  – basta lembrar que o Papa citou Sto Tomás que viveu no século XIII – a Amoris laetitia avançou no sentido de destacar certos princípios não muito bem refletidos ou comentados, mesmo estando presentes no Catecismo.  Penso que, neste sentido, a Amoris laetitia retoma aquele aprofundamento sobre as questões morais que São João Paulo II adotou através da Encíclica Veritatis splendor de 1993. Trata-se de um aprofundamento que exige do leitor (leigos e clérigos) serenidade, concentração e estudo.  As críticas contra a Amoris laetitia me parecem infundadas por falta de maior aprofundamento do texto. 

Certamente que diante das normas gerais, sempre existe o risco de cairmos no legalismo que desconsidera as condições pessoais e isso como se tudo fosse branco ou preto. Penso que a Amoris laetitia, sem desvalorizar a importância das normas gerais, nos convida a evitar julgamentos rígidos e apressados. No passado, São João XXIII também afirmou que “não se deverá jamais confundir o erro com a pessoa que erra, embora se trate de erro ou inadequado conhecimento em matéria religiosa ou moral” (Encíclica Pacen in Terris nº 157). É também claro que a Amoris laetitia não pode ser reduzida a este único tema dos divorciados. Trata-se de uma Exortação Apostólica que nos convida a aprofundar sobre o amor na família e isso abrange diversos aspectos a serem observados.