Para ficar na história
Daqui a dois dias, ministros começam analisar um dos processos mais polêmicos da Corte. Eles vão decidir quando começa a vida. Em jogo, estão as pesquisas com embriões congelados
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Renata Mariz
Da equipe do Correio
“Não temos dúvidas de que estamos diante do julgamento mais importante já ocorrido no Supremo Tribunal Federal”.
Cláudio Fonteles, ex-procurador-geral da República e autor da Adin
Os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) têm pela frente um dos julgamentos mais polêmicos da história da Corte. Na quarta-feira, irão decidir sobre a ação de inconstitucionalidade, proposta pelo ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles, que questiona a utilização de embriões humanos, congelados em clínicas de fertilização, pela ciência. Para ele, trata-se da sessão mais importante dos 180 anos do STF, opinião ratificada pelos ministros Celso de Mello e Carlos Ayres Britto, relator da ação. O colega Marco Aurélio de Mello discorda. “Sem dúvida, estamos diante de um julgamento histórico, porque a vida estará em discussão, mas não vamos potencializar tanto”, pondera Mello.
No centro da discussão está a pergunta feita por Fonteles na ação de inconstitucionalidade: “Quando começa a vida?”. O grupo de pesquisadores que apóiam as pesquisas irão sustentar que o foco da questão não é esse. “Não há resposta para uma pergunta errada”, defende Luís Barroso, advogado indicado por entidades científicas e associações de pacientes para elaborar um memorial que foi entregue aos ministros no ano passado. Segundo ele, a questão do momento em que a vida se inicia está ligada à fé. “E a fé ocupa um espaço privado na vida das pessoas, e não público.”
Do outro lado, juristas indicados pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) — que assim como as entidades de pesquisa também entraram no caso como peritos aceitos pelo STF — irão argumentar que o marco zero da vida precisa ser definido, para que os princípios constitucionais de dignidade à pessoa humana e inviolabilidade da vida sejam aplicados.
Pessoa em potencial
Para João Antonio Wiegerinck, especialista em direito constitucional, o Brasil poderá seguir a linha da maioria dos códigos europeus, que diferenciam proteção à vida e proteção à pessoa . “Para eles, assim como para nós, a vida se dá na fecundação. Mas o embrião não é uma pessoa. Enquanto as células, que são vivas, não se diferenciam, para formar tecidos, o que existe ali é uma pessoa em potencial, mas não ainda uma pessoa”, diz Wiegerinck.
Embora a matéria seja polêmica e envolva convicções pessoais, os ministros do STF não parecem ter intenção de protelar o julgamento. “Um pedido de vistas, após o debate exaustivo que já foi feito, significaria mais atrasos para as pesquisas”, diz Barroso.
Nos bastidores da Corte, o comentário é de que, além do próprio relator da ação, os ministros Carlos Britto, Celso de Mello e Ellen Gracie sejam favoráveis às pesquisas. O ministro Marco Aurélio é outro que já defendeu esse ponto de vista publicamente. O grupo contrário seria capitaneado por Alberto Direito e Cézar Peluso, que já mostraram convicções mais conservadoras quanto ao tema. O posicionamento de ministros como Gilmar Mendes e Eros Grau é considerado imprevisível. Para convencê-los, o voto do relator é o que deverá contar.
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Tira-dúvidas
1 O que são células-tronco embrionárias?
As células-tronco embrionárias encontradas em embriões humanos de até 14 dias têm a capacidade de se transformarem em todos os tecidos do organismo e de produzirem cópias idênticas de si mesmas. Por essa razão, as pesquisas com tais células acenam com a possibilidade de cura para inúmeras doenças degenerativas, muitas delas letais, que desafiam a medicina, como as doenças neuromusculares, diabetes, mal de Parkinson, câncer e lesões medulares, que provocam paraplegia e tetraplegia.
2 O que prevê a legislação brasileira?
A Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105, de 24/03/2005), na parte em que disciplina as pesquisas com células-tronco embrionárias, permite que sejam utilizados, para fins de pesquisa e terapia, embriões excedentes no processo de fertilização in vitro, desde que sejam inviáveis ou estejam congelados há mais de três anos. Exige, ainda, o consentimento dos genitores.
3 O que significa embriões excedentes no processo de fertilização in vitro?
A fertilização in vitro é um método de reprodução assistida, destinado a superar a infertilidade conjugal. A fecundação é feita em laboratório, utilizando o sêmen doado e os óvulos obtidos mediante aspiração folicular. A prática médica consolidada é a de se retirarem diversos óvulos para serem fecundados simultaneamente. Implantam-se de dois a três embriões fecundados no útero da mãe e o remanescente é congelado. A lei em vigor não permite que sejam produzidos embriões especificamente para a pesquisa; somente os excedentes do processo de fertilização in vitro podem ser utilizados.
4 O que pretende a ação que será julgada pelo STF?
A Ação Direta de Inconstitucionalidade movida pelo ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles pretende que seja declarada a inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei de Biossegurança que admitem e disciplinam as pesquisas com células-tronco embrionárias. O fundamento de seu pedido é que a vida humana acontece na fecundação e que, portanto, as pesquisas com células-tronco violariam o direito à vida e a dignidade da pessoa humana.
5 Qual o argumento dos defensores das pesquisas?
Eles alegam que as pesquisas com células-tronco embrionárias são consideradas estratégicas pela maioria dos países desenvolvidos do mundo, pelo avanço científico que podem representar. Trabalhos recentes sugerem que células adultas como as da pele podem ser reprogramadas para se comportarem como as embrionárias. A comunidade científica reconhece a importância das células-reprogramadas para pesquisas, mas destaca que elas não substituem as células-tronco embrionárias no caso de terapia celular.
6 O que é feito com os embriões inviáveis ou congelados há mais de três anos?
A lei brasileira somente permite a utilização de embriões inviáveis ou congelados há mais de três anos, que jamais serão implantados em útero materno. Para os defensores da utilização de embriões nas pesquisas, do ponto de vista ético, é mais valiosa sua utilização pela ciência, em busca de cura para doenças diversas, do que destiná-los ao congelamento perene ou ao descarte. Eles alegam que a declaração de inconstitucionalidade pelo STF iria prejudicar dramaticamente as pesquisas no país, mas não mudaria o destino dos embriões.
7 Há pesquisas com células-tronco no Brasil?
Hoje estão em andamento, no Brasil, 51 pesquisas que testam o potencial das células-tronco de gerar tecidos e futuros tratamentos. Em pacientes, a maior delas tem como alvo doenças graves do coração, como o infarto e envolve 1,2 mil pacientes em hospitais públicos de vários estados. Há, ainda, estudos para combater diabetes, lupus, leucemia, derrame, doenças do fígado e neuromusculares.
8 Se fossem usadas célula-tronco embrionárias, em vez das adultas, as curas de doenças no cérebro e lesões na medula espinhal seriam possíveis?
Alguns pesquisadores acreditam que as células-tronco embrionárias têm maior capacidade de se transformar em outras células. Mas o uso delas envolve um problema ético. Pois esse embrião, que poderia gerar uma vida, teria que ser descartado e, além disso, suas células-tronco correriam o risco de serem rejeitadas no corpo de outra pessoa. Por isso, vários cientistas defendem a clonagem humana para fins terapêuticos. Com células-tronco de embriões clonados, o risco de rejeição diminui.
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