A intelectual americana diz que o movimento iludiu uma geração ao afirmar que era possível cuidar da carreira primeiro e ter filhos depois – plano frustrado pelas limitações da natureza
Escritora americana Camille Paglia, de 64 anos, ganhou destaque na década de 1990 ao analisar a interação entre sociedade e cultura em seu livro Personas sexuais. Professora da Universidade das Artes, na Filadélfia, há quase 30 anos, algumas de suas opiniões mais famosas – e polêmicas – são sobre a influência negativa do movimento feminista americano. Camille se diz uma dissidente. Para ela, o feminismo do final da década de 1960 fez com que as mulheres se colocassem no papel de vítimas. Agora, Camille volta sua crítica à ditadura da mulher profissional – aquela que deixa a família em segundo lugar para cuidar da carreira e fica infeliz ao perceber que é tarde demais para ser mãe. “O feminismo deveria encorajar escolhas e ser aberto a decisões individuais”, diz Camille, ex-companheira da curadora de artes Alison Maddex, cujo filho, Lucien, ela adotou.
ÉPOCA – Hoje, muitas mulheres escolhem voltar à vida doméstica e abandonam a carreira em prol da família. Essa tendência é um avanço ou um retrocesso?
Camille Paglia – Muitas feministas de minha geração se opuseram com fervor a essa tendência de as mulheres voltarem a se dedicar exclusivamente ao papel de mãe, mas eu não concordo com essas feministas. Desde o fim da década de 1960, há uma depreciação de quem quer ser mãe e mulher. Para mim, feminismo é a luta por oportunidades iguais para as mulheres. Ou seja: remover qualquer barreira que atrapalhe o avanço na educação superior e no mercado de trabalho. O feminismo deveria encorajar escolhas e ser aberto a decisões individuais. As feministas estavam erradas ao exaltar a mulher profissional como mais importante que a mulher mãe e esposa. Uma geração inteira de profissionais americanas adiou a maternidade e, quando finalmente decidiu engravidar, não conseguiu encontrar parceiro ou teve problemas de fertilidade.
ÉPOCA – O adiamento da maternidade foi uma consequência negativa do feminismo?
Camille Paglia – O feminismo não tem sido honesto sobre a realidade biológica que as mulheres têm de enfrentar se quiserem unir maternidade a ambições profissionais. Nesse caso, a natureza entra em conflito com o idealismo moderno da igualdade sexual. As feministas asseguraram às mulheres que haveria tempo suficiente para elas terem filhos mais tarde, com 40 anos ou 50 anos, depois de alcançarem o sucesso profissional. Quanta ignorância científica! Há muito tempo sabemos que os riscos para a mãe e para a criança são maiores quando se tem mais de 35 anos. Segundo a perspectiva médica, a mulher é mais fértil e tem mais facilidade para criar os filhos quando está na casa dos 20 anos. Tornar-se mãe ou pai nessa idade é bastante diferente de aos 40 anos. Meus pais me tiveram quando estavam com 21 anos, enquanto meu pai ainda estava na faculdade. Eles eram mais espontâneos e divertidos do que 15 anos depois, quando meu pai se tornou professor e tinha uma rotina pesada de tarefas a cumprir.
ÉPOCA – Em muitos países, inclusive no Brasil, as mulheres são maioria nas universidades e constituem boa parte da força de trabalho, mas pesquisas sugerem que elas nunca se sentiram tão infelizes. Quais são as causas da tristeza?
Camille – As mulheres ganharam muito com a emancipação feminina. Acima de tudo, a possibilidade de trabalhar fora e de ser financeiramente independente, sem a humilhante subordinação ao pai ou ao marido. As mulheres provaram que podem ser tão bem-sucedidas quanto os homens, mas seres humanos são mais do que apenas profissionais. É mais complicado para elas do que para eles integrar sucesso profissional à felicidade emocional e sexual.
ÉPOCA – Por que as mulheres sofrem para se sentir realizadas?
Camille – Como uma mulher poderosa, acostumada a ter total controle no escritório, pode fazer a transição para a vida doméstica, em que o marido não quer ser tratado como empregado? Qual é o perfil ideal de parceiro para essa mulher? Um homem com uma postura quase de um filho: respeitador, subserviente, que obedece ternamente a cada ordem, ou um rival confiante e altamente sexual, que exige que ela abandone a postura dominadora? Essa tensa e delicada dança entre homem e mulher não pode ser atribuída, de maneira simplista, à misoginia (o ódio contra as mulheres) ou ao machismo (uma forma exagerada de orgulho das características masculinas). A infelicidade que muitas mulheres sentem hoje resulta em parte da incerteza delas sobre quem são e sobre o que querem nesta sociedade materialista, voltada para o status, que espera que a mulher se comporte como homem e ainda seja capaz de amar como mulher.
ÉPOCA – O feminismo não havia rejeitado as diferenças emocionais entre os gêneros?
Camille – A partir dos anos 1960, o movimento feminista tentou apagar qualquer menção às diferenças de comportamento causadas pelos hormônios. Elas foram consideradas irrelevantes para o desenvolvimento feminino. Qualquer pessoa que se referisse aos hormônios estava supostamente reduzindo as mulheres a animais irracionais. Mas homens e mulheres sentem e expressam emoções de maneira diversa, porque os hormônios atingem o cérebro dos dois sexos em níveis diferentes.
ÉPOCA – O feminismo fragiliza a figura feminina ao mostrá-la como vítima da sociedade dominada por homens. A senhora concorda com essa representação da mulher?
Camille – Como dissidente do feminismo, eu rejeito essa projeção sexista conspiratória. O feminismo argumenta que a autoestima das mulheres é sistematicamente atacada por mensagens da sociedade dizendo que elas são inferiores. Por isso, estariam condenadas a uma vida de preocupação sobre o que os outros pensam delas. A fascinação das mulheres por espelhos, por exemplo, é interpretada como se a mulher tivesse incorporado o olhar crítico e negativo da sociedade machista. Não posso concordar com isso.
ÉPOCA – A sexualidade foi afetada pela presença das mulheres no mercado de trabalho?
Camille – O novo ambiente de trabalho, altamente tecnológico, é mais favorável às mulheres que o antigo mundo do trabalho manual, em que a força física dos homens era uma vantagem. Sentados ao computador, homens e mulheres têm habilidades iguais. Entretanto, a supressão do corpo no ambiente estéril do escritório é dessexualizante. Consequentemente, a pornografia se tornou uma necessidade cultural, reequilibrando a psique humana ao restaurar a conexão com nosso caráter animal
ÉPOCA – A senhora escreveu que Lady Gaga, o maior sucesso do pop dos últimos anos, é a “morte do sexo” e que os fãs dela “estão isolados numa tecnocracia de pobreza emocional”. Lady Gaga representa uma era assexuada?
Camille – Fico horrorizada com a popularidade mundial de Lady Gaga, porque isso demonstra o declínio chocante da qualidade da música popular. As músicas dela são medíocres, com letras vazias e sem sentido. Em segundo lugar, detesto as fantasias pretensiosas, e às vezes grotescas, que ela usa até no dia a dia. Ela se gaba de nunca ter sido vista em público a não ser fantasiada de Lady Gaga. Isso significa que gasta muito tempo e desvia muita energia para parecer apenas superficial. Madonna, ao contrário, se deixa fotografar como ela mesma, sem maquiagem, da maneira como ela se veste cotidianamente. Uma grande estrela pop como Gaga não deveria andar por aeroportos de sutiã e meia arrastão. Além de estar muito longe de ser sexy, essa exposição feia e embaraçosa mostra que Gaga é neuroticamente alienada de seu próprio corpo.
ÉPOCA – A eleição de uma mulher presidente significa que o Brasil está à frente na igualdade de gênero?
Camille – A eleição de Dilma é certamente uma incrível demonstração do progresso brasileiro na igualdade de gêneros. Em comparação, nos Estados Unidos, nenhuma mulher jamais foi indicada para ser candidata à Presidência por nenhum dos dois grandes partidos. O problema, nos Estados Unidos, é que o presidente também é o comandante das Forças Armadas. Uma mulher precisa demonstrar aptidão para esse papel – pelo cumprimento do serviço militar ou por estudar assuntos militares. O Brasil é afortunado por ser livre da união entre militarismo e patriotismo.
Fonte: MARCELA BUSCATO, ÉPOCA