O dia 1º de janeiro é celebrado anualmente, pela Igreja Católica, como o Dia Mundial da Paz. Neste ano, o papa Francisco enviou aos chefes de Estado, diplomatas, líderes sociais e autoridades da Igreja do mundo inteiro uma Mensagem, abordando o tema da escravidão.
Conhecida na humanidade desde tempos imemoriais, a escravidão ainda continua viva, de diversas maneiras, um pouco por toda parte; é a sujeição da pessoa por outra pessoa, que se apodera da liberdade e da autonomia do seu semelhante, explorando-o para interesses próprios, aviltando a sua dignidade e reduzindo-o à condição de objeto, passível até mesmo de compra e venda.
“É um delito de lesa humanidade”, já havia recordado o Pontífice num discurso à delegação internacional da Associação de Direito Penal, em 23 de outubro de 2014. Apesar de o Direito Internacional já reconhecer a cada pessoa o direito inderrogável de não ser reduzida à escravidão e à servidão, essa triste prática está longe de ter sido banida da vida cotidiana.
Ainda há milhões de pessoas no mundo, adultas e crianças, homens e mulheres de todas as idades, constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravidão. E o Papa refere-se aos trabalhadores, mesmo menores, que trabalham ilegalmente ou são forçados a derramar seu suor, sem as garantias mínimas de salário digno e de seguridade social, definidas nas convenções internacionais do trabalho.
Há multidões de migrantes, enganados e explorados de maneira inescrupulosa na sua precária busca por vida melhor; muitos são transportados de maneira desumana, despojados de seus bens e de sua liberdade, forçados a viver e trabalhar na clandestinidade, documentos retidos, abusados sexualmente e chantageados de todas as formas.
São muito numerosos os escravos e escravas sexuais, mesmo menores, nas redes impiedosas da exploração da prostituição; esta mazela da humanidade, antiga e sempre reciclada, envolve o tráfico de pessoas por organizações poderosas em todos os níveis sociais e econômicos. Mas há também as pessoas reduzidas à escravidão no tráfico e na comercialização de órgãos humanos, no recrutamento forçado de pessoas, mesmo crianças, para serem combatentes em guerras fratricidas; há as vítimas do sequestro, feitas escravas e moeda de troca na busca de resgates; e quantos são os escravos do tráfico e da comercialização da droga e da dependência química, aniquilados em sua dignidade e esvaziados da vontade de viver?!
A escravidão “é uma ferida no corpo da humanidade contemporânea e uma chaga na carne de Cristo”, lamenta Francisco. Na antropologia cristã, todos os seres humanos estão ligados entre si e são parte de “corpo de Cristo”. Como se explica que a escravidão, esta vergonha da humanidade, ainda persista? Há muitos motivos, mas na raiz desse mal está uma concepção antropológica inaceitável, segundo a qual não há dignidade e direitos fundamentais universalmente válidos para a pessoa humana.
Esta concepção distorcida e corrompida leva a tratar semelhantes como se não fossem seres humanos de igual dignidade, irmãos e irmãs em humanidade; como se fossem criaturas inferiores, objetos de uso e de proveito de outros. No fundo, nega-se o reconhecimento da humanidade do outro. Mas a pessoa humana jamais deveria ser vista e tratada como objeto e meio; sempre, como sujeito e fim por ela mesma.
Várias causas sociais também concorrem para a prática da escravatura, como a pobreza insuportável, o subdesenvolvimento e a exclusão social, a falta de acesso à educação, as escassas oportunidades para orientar a vida de maneira digna. Muitas vezes, as vítimas da escravidão procuram uma saída para as condições sub-humanas em que vivem e acabam confiando em promessas de vida melhor feitas por hábeis aliciadores das redes do tráfico humano.
Não raro, as vítimas da escravidão já foram, antes, golpeadas pelos flagelos da guerra, da violência, do terrorismo, da criminalidade e da discriminação social e religiosa, vendo-se obrigadas a abandonar tudo, a emigrar, a enfrentar toda sorte de incertezas e precariedades; tornam-se, então, presas fáceis de chacais humanos inescrupulosos, prontos para envolvê-los num círculo de miséria e corrupção ainda mais aviltantes.
Diante do quadro vergonhoso das escravidões modernas, o que precisa ser feito? Francisco volta ao problema da “globalização da indiferença”: não podemos fechar os olhos àquilo que se passa ao nosso redor, como se não nos dissesse respeito. A renovação da consciência comum sobre a dignidade humana, nossa e de cada ser humano, é fundamental. O que é feito ao próximo diz respeito também a cada membro da família humana. Em cada pessoa reduzida à condição de escrava, a nossa própria dignidade também é atingida e ferida. E isto não nos deve deixar indiferentes.
Mas o Papa também apela para um tríplice empenho, em nível institucional: a prevenção contra a prática da escravidão, a proteção às vítimas e a ação judicial contra os responsáveis. Os Estados e organizações políticas e diplomáticas internacionais precisam aprimorar a legislação e as práticas preventivas e repressivas contra esse delito nefando; muito podem fazer as organizações da sociedade civil, até mesmo para se criar uma consciência mais ampla pela rejeição do lucro fácil e das vantagens do consumidor, conseguidas mediante a exploração da mão de obra semiescrava.
O fenômeno da escravidão moderna é mundial e sua solução excede as competências de uma única comunidade ou nação. Esta ferida no corpo da humanidade precisa ser sanada com o esforço de todos e mediante o bálsamo dos verdadeiros valores humanos e éticos. Francisco apela para a globalização da solidariedade, para que não nos tornemos cúmplices da escravidão e do sofrimento de inumeráveis irmãos.
Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo de São Paulo (SP)
Publicado em O Estado de São Paulo.