“A Igreja fornece subsídios pastorais precisos e concretos sobre a orientação espiritual e sobre as dúvidas quanto à celebração dos Sacramentos para as pessoas que desejam pôr fim à própria vida e relembra a missão de todos que mantém contato com os doentes em fase terminal”. Assim, doutora Maria Emilia de Oliveira Schpallir Silva e diácono João Vicente da Silva comentam sobre a carta Samaritanus Bonus – sobre o cuidado das pessoas nas fases críticas e terminais da vida, divulgada em 22 de setembro pela Congregação para a Doutrina da Fé.
Membros da Comissão de Bioética da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o casal Maria Emilia e João Vicente destaca, em entrevista, aspectos relevantes do texto que reafirma o posicionamento da Igreja sobre o cuidado e a sacralidade da vida humana.
No texto, “a Igreja se mantém fiel aos ensinamentos do Evangelho e mais uma vez intervém com clareza a respeito do ensinamento do Magistério contrário à prática da Eutanásia e do suicídio assistido, excluindo toda e qualquer ambiguidade mesmo que legitimados por leis nacionais”, explicam os especialistas.
Na prática pastoral, o texto colabora ao oferecer caminhos a partir da parábola do Bom Samaritano, segundo os doutores, que também partilham sobre o crescimento da medicina paliativa no Brasil e contextualizam a respeito do debate em torno da eutanásia e do suicídio assistido. Maria Emilia e João Vicente ainda explicam o que significam as Diretivas Antecipadas de Vontade.
– O que o documento oferece? São reflexões, indicações, normas?
O Documento oferece reflexões sobre a Parábola do Bom Samaritano e indicações sobre sua aplicação no cuidado integral às pessoas doentes nas fases terminais da vida ou em situações críticas de suicídio. O próprio documento afirma que “deseja iluminar os pastores e os fiéis nas suas preocupações e nas suas dúvidas acerca da assistência médica, espiritual e pastoral devida aos doentes nas fases críticas e terminais da vida”.
A Igreja fornece subsídios pastorais precisos e concretos sobre a orientação espiritual e sobre as dúvidas quanto à celebração dos Sacramentos para as pessoas que desejam pôr fim à própria vida e relembra a missão de todos que mantém contato com os doentes em fase terminal, como familiares, capelães, ministros extraordinários da Eucaristia, agentes de pastoral, voluntários e profissionais da saúde. O cuidado pastoral da parte de todos pode ajudar o doente a perseverar na graça santificante e morrer na caridade, no Amor de Deus.
– Como este texto colabora para a prática pastoral diante das pessoas nas fases críticas e terminais da vida?
Fundamentado na Parábola do Bom Samaritano, o texto oferece caminhos para a prática pastoral dos discípulos de Jesus Cristo a partir dos seus ensinamentos: VER O PRÓXIMO, perceber o sofrimento, TER COMPAIXÃO, Misericórdia E CUIDAR.
No Item III, o documento discorre sobre “O coração que vê” do Samaritano e nos recorda sobre a Dignidade da Vida Humana lembrando que ela é um dom sagrado e inviolável: “O homem, em qualquer condição física ou psíquica em que se encontre, mantém a sua dignidade originária de ser criado à imagem de Deus”. O fundamento da dignidade humana reside neste mistério: Deus cria o ser humano à sua imagem e semelhança para participar da sua vida divina e o mistério da encarnação do Filho para nos salvar.
O Papa Francisco, a respeito da Compaixão, nos ensina: “Sem compaixão, quem olha não se comove com o que vê e passa adiante; ao contrário, quem tem um coração compassivo deixa-se tocar e comover, pára e cuida”. A compaixão foi a motivação da ação do samaritano e também deve a motivação da ação pastoral dos seguidores de Jesus Cristo.
Sobre o cuidado lembra o documento: “A Igreja aprende do Bom Samaritano o cuidado com o doente terminal e obedece assim ao mandamento conexo ao dom da vida: «respeita, defende, ama e serve a vida, cada vida humana!»[97]. O evangelho da vida é um evangelho da compaixão e da misericórdia, direcionado ao homem concreto, fraco e pecador, para aliviá-lo, mantê-lo na vida da graça e, se possível, curá-lo de toda ferida”.
A ética do Cuidado é uma ação pastoral que envolve relações interpessoais, ficar junto, em torno, estar com, e em alguns momentos, a simples, mas imprescindível presença.
Em relação aos ensinamentos do Magistério da Igreja, entre outros, nos recorda sobre a proibição da eutanásia e do suicídio assistido, da obrigação moral de excluir a obstinação terapêutica e acerca dos cuidados paliativos:
Apesar do progressivo relativismo e do individualismo presentes na sociedade moderna, a Igreja se mantém fiel aos ensinamentos do Evangelho e mais uma vez intervém com clareza a respeito do ensinamento do Magistério contrário à prática da Eutanásia e do suicídio assistido, excluindo toda e qualquer ambiguidade mesmo que legitimados por leis nacionais.
O Magistério da Igreja nos recorda sobre a obrigação moral de excluir a obstinação terapêutica, quando a medicina se utiliza de meios capazes de retardar artificialmente a morte sem que o paciente receba reais benefícios. Entretanto não se deve negar os cuidados paliativos para aqueles doentes portadores de doenças crônicas, em fase terminal e, em alguns casos, portadores de grande sofrimento. São a expressão autêntica do cuidado, símbolo do estar junto, do acompanhamento, propiciando o direito à morte com dignidade e com serenidade.
– O que já pode ser encontrado no Brasil no sentido do cuidado samaritano dos doentes nessas fases da vida?
No Brasil, assim como em muitos países, tem crescido a importância da Medicina Paliativa. Os cuidados paliativos visam proporcionar alívio da dor e de outros sintomas angustiantes; afirmam a vida e o morrer como um processo normal, não tendo a intenção de acelerar ou adiar a morte; integram os aspectos psicológicos e espirituais da assistência ao paciente; oferecem um sistema de apoio para ajudar os pacientes a viver tão ativamente quanto possível até o momento da morte e um sistema de apoio para ajudar a família a lidar com o paciente durante a doença e em seu próprio falecimento; usam uma abordagem de equipe, multidisciplinar, para atender às necessidades dos pacientes e de suas famílias, incluindo aconselhamento de luto, se indicado; visam melhorar a qualidade de vida e podem também influenciar positivamente o curso da doença; devem ser aplicados no início da enfermidade, em conjunto com outras terapias que se destinam a prolongar a vida, tais como a quimioterapia ou radioterapia, incluindo as investigações necessárias para melhor compreender e tratar as complicações clínicas angustiantes (OMS, 2002, grifo nosso). Fica claro que a OMS não inclui a eutanásia como opção nos cuidados paliativos. Na realidade, são opções totalmente diversas para lidar com o sofrimento na terminalidade da vida humana.
– Percebe-se que a realidade da eutanásia e do suicídio assistido é mais presente na Europa, com forte debate em torno de legislações a favor deste tipo de prática. Aqui no Brasil, há algum tipo de debate crescente em torno desta questão?
As discussões a respeito de eutanásia e suicídio assistido estão diretamente relacionadas à questão da autonomia do paciente e às Diretivas Antecipadas da Vontade ou Testamento Vital que têm se dado em vários países, inclusive no Brasil.
As Diretivas Antecipadas da Vontade (DAV) têm recebido denominações diversas em diferentes países de acordo com os termos utilizados em suas legislações sobre a matéria, algumas delas questionáveis como “testamento vital” e “testamento biológico”, uma vez que o termo testamento se refere a desejo póstumo, enquanto as Diretivas dizem respeito a determinações que devem ser seguidas quando ainda há vida. (ALVES, 2014 p. 150).
O Conselho Federal de Medicina no Brasil (CFM) definiu as Diretivas Antecipadas da Vontade como o “conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”, na Resolução n. 1995/2012 de 9 de agosto de 2012, no seu artigo 1º. Essas Diretivas deverão ser levadas em conta pelo médico no caso de incapacidade do paciente em se comunicar e expressar autonomamente sua vontade (art.2º) e prevalecerão sobre o desejo dos familiares (art. 1º, §3), devendo ser registradas em prontuário (art. 1º. §4), em comunicação feita pelo próprio paciente ou através de representante por este designado (art. 1º. §1), desde que não estejam em desacordo com os preceitos do Código de Ética Médica (art. 1º. §2). (CFM, 2012)
Embora a autonomia do paciente seja o princípio que fundamenta as Diretivas Antecipadas da Vontade, a sua expressão prática vai depender do ordenamento jurídico de cada país. Dessa forma, o testamento vital pode requerer a eutanásia passiva, ativa ou suicídio assistido em países onde a legislação permite a eutanásia, seja por descriminalização como Uruguai ou por legalização da prática como Holanda e Bélgica. Nos outros países, entre os quais se inclui o Brasil, em que o direito à vida é constitucional e a eutanásia considerada crime, as Diretivas Antecipadas dizem respeito à recusa à obstinação terapêutica ou distanásia, não podendo ferir a Constituição Federal e nem as determinações do Código de Ética Médica conforme deixa claro a Resolução 1995/2012 do CFM. O Código de Ética Medica afirma no art. 41 do capítulo V, referente à relação do médico com pacientes e familiares, ser vedado ao médico “abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal”. Em parágrafo único do referido artigo, declara que “nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal”, o que configura prática da ortotanásia.
A ortotanásia difere da eutanásia. Permite que o paciente terminal seja deixado para que o processo de morte siga seu curso naturalmente, evitando-se tratamentos desproporcionais que não conseguirão mais possibilitar a cura do doente, mas apenas aumentar sua agonia. Assegura-se ao paciente assistência básica que consiste em hidratação, alimentação, higiene, medicamentos para atenuar a dor. Difere da eutanásia passiva, pois não tem por objetivo a eliminação do sofrimento pela supressão da vida do paciente, mas pela minimização daquele. A ortotanásia envolve os cuidados paliativos (SILVA, 2015).
Confira a carta Samaritanus Bonus na íntegra.
BIBLIOGRAFIA
- ALVES, C.A. Diretivas antecipadas de vontade e testamento vital: uma interface nacional e internacional. In: PESSINI, Leocir; BERTACHINI, L., BARCHIFONTAINE, C. de P. Bioética, cuidado e humanização, v. I, cap. 8. São Paulo: Loyola, 2014, p.137-157.
- CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução n. 1995/2012. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2012/1995_2012.pdf>. Acesso em: 05 ago. 2015.
- ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Cuidados paliativos. disponível em: <http://www.who.int/cancer/palliative/definition/en/>. Acesso em: 05 ago. 2015.
- SILVA, Maria Emilia de Oliveira Schpallir.Diretivas Antecipadas da Vontade. Uma reflexão bioética à luz da moral cristã. REB. Revista Eclesiastica Brasileira, v. 75, p. 809-826, 2015.
- MARIA EMILIA DE OLIVEIRA SCHPALLIR SILVA
Médica, Doutora em Bioética pelo Centro Universitário São Camilo, Especialista em Coloproctologia pela SBCP, Especialista em Bioética pela Faculdade de Medicina da USP, Graduação em Teologia pela PUCCAMP, Membro da Comissão de Bioética da CNBB.
- DIÁC. JOÃO VICENTE DA SILVA
Odontólogo, Doutor em odontologia pela Universidade de São Paulo, Diretor da Faculdade de Odontologia da PUC CAMPINAS, Graduado em Teologia pela PUC CAMPINAS, Membro da Comissão de Bioética da CNBB.