Estado laico e religião
No Brasil contemporâneo aflorou um conflito que era desconhecido até época recente. Trata-se do conflito entre cultura secularizada e fenômeno religioso. No entanto, esta realidade não é adequadamente focalizada, por isso, a justa e necessária a-confessionalidade do Estado, que se apresenta sob a forma de “neutralidade” valorativa e ética, na realidade serve para o Estado dar sustentação e difusão a uma visão que se apoia na visão de mundo secularista e sem Deus. Mas esta visão (secularista e sem Deus) é uma entre as diversas visões culturais (de éticas substantivas) que habitam a sociedade plural. Além disso, no Brasil, trata-se certamente de uma visão minoritária, o que é evidente se damos crédito aos dados censitários. Dessa forma, o Estado “neutral”, longe de ser efetivamente neutral na prática política e cultural, assume como própria uma cultura específica, a secularista, que através de medidas dos poderes legislativo, judiciário e executivo, torna-se cultura dominante e acaba por exercer um poder negativo com relação às outras identidades, especialmente as de matriz religiosa presentes na sociedade civil, tendendo a marginalizá-las e até a excluí-las do âmbito público e do diálogo democrático.
É evidente a marca autoritária desta postura. De fato, o Estado, supostamente laico e eticamente neutro, tomando o lugar da sociedade civil, vai ditando normas éticas e orientações da conduta, renegando na prática a laicidade e a neutralidade abstratamente defendidas.
É evidente que, neste caso, trata-se de atitudes antidemocráticas, na medida em que contradizem a sensibilidade e a vontade da grande maioria da população.
Sob uma aparência de “neutralidade” e objetividade das leis, se camufla e se difunde, pelo menos nos fatos, uma cultura fortemente marcada por uma visão secularista do ser humano e do mundo, sem qualquer abertura à dimensão transcendente. Numa sociedade pluralista, essa postura secularista é perfeitamente legítima, mas somente como uma entre outras. Se, no entanto, o Estado assume para si esta postura que é própria de uma minoria, acaba inevitavelmente por limitar a liberdade religiosa.
É necessário um Estado que, sem assumir como própria uma específica visão do ser humano e do mundo, não considere como sua tarefa, em nome da a-confessionalidade, neutralizar (anular) as visões de mundo que se exprimem na sociedade civil. Pelo contrário, espera-se que abra espaços nos quais cada sujeito pessoal e social (cada identidade) possa mostrar sua contribuição à edificação do bem comum.
Estas dificuldades, provavelmente, nascem de um insuficiente costume para dialogar e ouvir as razões diferentes das próprias. Há muitos indícios de que os detentores do poder estão mais familiarizados em usar o poder para resolver questões pendentes, considerando suficiente, para tomar suas decisões, as interpretações das diversas identidades que são apresentadas pelos meios de comunicação, podendo dispensar esforços adicionais para um entendimento mais correspondente à realidade.
A respeito das identidades religiosas, são difundidos estereótipos segundo os quais elas nada mais têm a contribuir para o bem comum, a não ser conteúdos arcaicos, defasados com relação à realidade presente, mitológicos e folclóricos, em contradição com as expectativas de progresso que parecem razoáveis porque aceitas no mundo inteiro. Acolher no espaço público essas identidades poderia significar atribuir-lhes uma relevância que não têm. Essa parece ser a dinâmica pela qual os preconceitos, que sempre foram os maiores aliados do autoritarismo, legitimando discriminações, exclusões e, até mesmo violências, voltem a agir em plena era democrática na república brasileira.
Por isso, pode-se afirmar que a liberdade religiosa constitui o mais sensível indicador do grau de civilização e de democracia da nossa sociedade plural.
Comissão Nacional da Pastoral Familiar