“Um sacramento celebrado sem fé”. Assim se apresentava, em 2005, ao Papa Bento XVI, a situação de alguns matrimônios celebrados sem que os então nubentes fossem realmente crentes, sem que vivessem a partir dos valores de Jesus ensinados por sua Igreja. O caso deveria ser estudado em profundidade. E assim a Igreja o fez com os dois Sínodos sobre a Família e os documentos Amoris Laetitia e Mitis Iudex Dominus Iesus, publicados pelo Papa Francisco onze anos depois.
“Diria que particularmente dolorosa é a situação daqueles que foram casados na Igreja, mas não eram realmente crentes e o fizeram por tradição, e depois se encontrando em um novo matrimônio inválido se convertem, encontram a fé e se sentem excluídos do Sacramento. Isto é realmente um grande sofrimento e quando eu era Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, convidei várias Conferências episcopais e especialistas a estudar este problema: um sacramento celebrado sem fé”,
disse Bento XVI num encontro com o clero da diocese de Aosta, na Itália.
O evento e as falas de Bento XVI foram recordados pelo Vatican News, em matéria publicada na última semana. Confira o texto na íntegra: Nulidades matrimoniais, as palavras de Bento XVI no início de seu pontificado
Para aprofundar o tema e conhecer as medidas e iniciativas da Igreja frente a essa situação, o Portal Vida e Família conversou com o padre Crispim Guimarães, assessor da Comissão Episcopal Pastoral para a Vida e a Família da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e secretário executivo da Comissão Nacional da Pastoral Familiar (CNPF).
“O matrimônio traz implicações em todas as dimensões das pessoas que por ele se unem. O aspecto da fé, que significa adesão a uma pessoa: Jesus Cristo e tudo que ele propõe, não pode ser assumido enquanto tal, se as pessoas contraentes não o conhecem e nele não creem”, explica padre Crispim.
Na entrevista, o assessor nacional da Pastoral Familiar também ressalta a importância da iniciação à vida-cristã, da catequese pré-matrimonial, do discernimento vocacional e da vida espiritual para o ser humano.
ENTREVISTA
1. O texto de Vatican News recorda as palavras de Bento XVI sobre os que “não eram realmente crentes” e casaram na Igreja por tradição. É uma situação presente também no Brasil. A Amoris Laetitia e os motu proprio do Papa Francisco dão alguma orientação sobre a possibilidade de declarar nulas tais uniões?
O Sacramento do Matrimônio se fundamenta sobre a dimensão natural da união entre um homem e uma mulher, que espontaneamente se atraem fisicamente e tem ideais em comum. Mas lembremos que o matrimônio traz implicações em todas as dimensões das pessoas que por ele se unem. O aspecto da fé, que significa adesão a uma pessoa: Jesus Cristo e tudo que ele propõe, não pode ser assumido enquanto tal, se as pessoas contraentes não o conhecem e Nele não creem. Veja, isso é uma questão mais pastoral que jurídica, embora não se negue a dimensão da lei.
Neste caso, a Mitis Iudex Dominus Iesus, Art. 14 § 1, diz que “aquela falta de fé que pode gerar a simulação do consentimento ou o erro que determina a vontade”, é uma das causas que pode levar a nulidade. Esclarece, assim, que o Matrimônio “exige” escolhas conscientes de quem tem “um ideal”, que comunga, por adesão, a um “Ideal Institucional”, cuja fonte é o próprio Cristo. “A tibieza, qualquer forma de relativismo ou um excessivo respeito na hora de propor o sacramento seriam uma falta de fidelidade ao Evangelho e também uma falta de amor da Igreja pelos próprios jovens. A compreensão pelas situações excepcionais não implica jamais esconder a luz do ideal mais pleno, nem propor menos de quanto Jesus oferece ao ser humano. Hoje, mais importante do que uma pastoral dos falimentos é o esforço pastoral para consolidar os matrimônios e assim evitar as rupturas” (AL, n. 307).
2. Essa situação também revela que há uma tarefa posta à Igreja frente às uniões de pessoas que realmente não tem uma vida de fé católica. Há alguma medida estabelecida para que não sejam promovidas tais uniões?
Amoris Laetitia, no Capítulo VIII, fala do discernimento, mas em muitas passagens ressalta o valor do acompanhamento e da inserção na vida da Igreja, Corpo de Cristo. Isto pressupõe um caminho a ser feito com aqueles que desejam a união matrimonial. É um caminho onde se deve apresentar a beleza do encontro com Jesus, pois não devemos esquecer da constatação de que existe uma multidão de batizados, não evangelizados. Por isso, é preciso uma “Nova Evangelização”, onde se perceba que em Cristo há uma “riqueza insondável” (Ef 3,8). Portanto, o encontro com Cristo levará a abandonar uma “fé” cultural, fé que não subsisti quando a cultura é permeada pelo paganismo, passando a uma “fé do encontro com alguém”, não uma ideia ou ideologia, como disse o Papa Bento na abertura da Conferência de Aparecida.
3. Uma das medidas pastorais frente à situação são as catequeses pré-matrimoniais. Qual a importância desse processo? É uma oportunidade para a possibilitar um itinerário de iniciação cristã?
É importante salientar que o Pré-Matrimônio deve ser encarado como discernimento vocacional, requerendo que a “Igreja Doméstica”: casa e a “Igreja, família de famílias”, durante o período da infância e adolescência incutam no coração das crianças e adolescentes a importância para descobrir qual foi o chamado que Deus particularmente os fez. Assim, o Pré-Matrimônio não é só para falar de casamento, é preciso recordar aos filhos e fiéis que existem outros caminhos. Nos diversos chamados é imprescindível a experiência de encontro com Jesus Cristo e adesão às suas propostas. Sem este pressuposto, qualquer escolha corre o risco de naufragar.
Mas àqueles que se sentem mais chamados ao Sacramento do Matrimônio é preciso acompanhar bem, num processo sem pressa, especialmente acompanhando com a riqueza da proximidade e do testemunho de fé.
“Habitualmente, são muito úteis os grupos de noivos e a oferta de palestras opcionais sobre uma variedade de temas que realmente interessam aos jovens. Entretanto são indispensáveis alguns momentos personalizados, dado que o objetivo principal é ajudar cada um a aprender a amar esta pessoa concreta com quem pretende partilhar a vida inteira. Aprender a amar alguém não é algo que se improvisa, nem pode ser o objetivo dum breve curso antes da celebração do matrimônio. Na realidade, cada pessoa prepara-se para o matrimônio, desde o seu nascimento. Tudo o que a família lhe deu, deveria permitir-lhe aprender da própria história e torná-la capaz dum compromisso pleno e definitivo”.
Amoris Laetitia, n. 208
O Papa e também os padres sinodais, não negam os benefícios dos cursos e dos encontros de grupos, mas propõem um caminho/itinerário, que os ajudem a discernir depois de uma fé mais amadurecida. Eis uma forma de “Nova Evangelização”, nova e sempre antiga, pois foi assim que Jesus procedeu com os discípulos de Emaús (cf. Lc 24, 13-35).
“A preparação dos que já formalizaram o noivado, quando a comunidade paroquial consegue acompanhá-los com bom período de antecipação, deve dar-lhes também a possibilidade de individuar incompatibilidades e riscos. Assim é possível chegarem a dar-se conta de que não é razoável apostar naquela relação, para não se expor a um previsível fracasso que terá consequências muito dolorosas”.
Amoris Laetitia, n. 209
Não se deve esquecer que a iniciação a vida cristã tem como fundamento o mergulhar na vida da Palavra de Deus, porque não existe experiência com o Senhor sem o fundamento bíblico. Por isso, a V Conferência do Celam, assim se pronunciou: “A Iniciação cristã é um desafio que devemos encarar com decisão, com coragem e criatividade, visto que em muitas partes a iniciação cristã tem sido pobre e fragmentada. Ou educamos na fé, colocando as pessoas realmente em contato com Jesus Cristo e convidando-as para seu segmento, ou não cumpriremos nossa missão evangelizadora” (DAp, n. 287).
“O matrimônio tende a ser visto como mera forma de gratificação afetiva, que se pode constituir de qualquer maneira e modificar-se de acordo com a sensibilidade de cada um. Mas a contribuição indispensável do matrimônio à sociedade supera o nível da afetividade e o das necessidades ocasionais do casal”.
Evangelii Gaudium, n. 66
4. Quando uma pessoa celebra o matrimônio sem ter uma vida de fé, quais os principais aspectos que podem atrapalhar na vida conjugal e familiar?
A vida espiritual não é uma dimensão qualquer do ser humano, é um modo de ser e estar no mundo, que impregna a pessoa de uma força extraordinária, especialmente, no que concerne as capacidades de resiliência, de criatividade, de fraternidade e de olhar para as etapas da vida de modo a não se deixar deslumbrar pelo materialismo, pelo hedonismo, escondendo ou relativizando muitas coisas, evitando as divergências, limitando-se assim a adiar as dificuldades (cf. AL, n. 209). Sem a fé, na sociedade relativista, como um homem e uma mulher poderão “entender o que é o amor e o compromisso, aquilo que se deseja do outro, o tipo de vida em comum que se quer projetar”? (ibidem).
É evidente que sem a fé a atração física se fragiliza, abrindo espaço para o permissivismo individual e até de ambos. O desejo físico é volúvel e precário, mas a fé lhe oferece uma visão mais profunda do que vem a ser a relação matrimonial.