No próximo mês de outubro reunir-se-á novamente, em Roma, a assembléia geral do Sínodo dos Bispos, convocada pelo papa Francisco para refletir sobre “a vocação e a missão da família na Igreja e na sociedade contemporânea”.
Os preparativos já estão em andamento: as Conferências Episcopais, em todos os países, estão recolhendo reflexões e contribuições para o tema. Os representantes dos bispos também já estão sendo escolhidos pelas respectivas Conferências. Do Brasil, foram escolhidos 4, na recente assembléia geral da CNBB, em abril passado.
Em geral, a família é vista hoje como uma instituição em crise. De fato, ela é atingida em cheio pela crise mais ampla da diluição dos valores e referenciais do comportamento e pelas drásticas mudanças culturais. Sinais disso são o casamento fragilizado, pelo qual já não se tem um apreço tão elevado como em outros tempos; novas propostas de convivência entre homem e mulher tendem a sobrepor-se ao modelo convencional de casamento e família.
Mas também as competências próprias da família estão em processo de mudança, como a distribuição dos papéis do casal no casamento; a procriação e a educação da prole, sempre consideradas inerentes ao casamento e à família, já nem sempre são vistas assim; o papel educador da família enfrenta muitas dificuldades, impostas até pelas condições sociais e econômicas e pelo ritmo envolvente da vida. Da mesma forma, as relações de cuidado entre as pessoas da família tendem a ser sufocadas cada vez mais por pesadas cargas burocráticas e pelas exigências da vida econômica. Penso nas crianças na escola o dia inteiro, mas longe do contato com os pais; ou nos doentes, entregues aos cuidados da previdência social, mas privados dos afetos familiares.
Não há dúvida que a família atravessa uma crise acentuada e, a muitos, o modelo tradicional desta instituição já não parece mais responder às condições da cultura contemporânea. Vem, então, a tentação de apregoar a falência da família tradicional e de buscar novos modelos de família, com uniões livres e descompromissadas, provisórias e até múltiplas; também as relações entre pessoas do mesmo sexo vão sendo propostas como novas formas de casamento e família. E não é raro que se veja na família um “problema”, mais que um recurso e uma possibilidade. Dela se espera o tudo e o nada, a solução de todos os problemas ou a fonte de todos os males.
Não pretendo ter a resposta para todos os questionamentos feitos à família tradicional. Mas tenho a convicção de que ela continua sendo uma instituição valiosa e insubstituível para a pessoa e a comunidade humana. Os defeitos e problemas da comunidade familiar são decorrentes das limitações e condicionamentos das pessoas que a integram. Cada um contribui com suas qualidades e defeitos. Não há família perfeita, como não há família sem valores. E não existe solução cabalística para todos os problemas familiares. As realidades humanas têm a medida e o alcance da própria condição humana.
A questão é saber se, na vida das pessoas, existe algo que possa suplantar ou substituir o papel da família? Sinceramente, não creio que haja. Portanto, é preciso continuar com a família que temos, fazendo tudo o que nos cabe para torná-la a melhor possível. A família é um enorme recurso no convívio e pode proporcionar ao ser humano a realização de suas naturais aspirações: companhia e experiência da alteridade; afetos, intimidade, amor, partilha e senso de pertença, cuidado, apoio nas fragilidades e limitações, aceitação sem reservas, alegria e esperança.
A família precisa ser valorizada por aquilo que ela é e pode oferecer às pessoas e à sociedade. Um dos aspectos fundamentais da vida familiar é a comunicação entendida interação entre pessoas, mais que o uso de recursos técnicos. A realidade familiar não é feita de unidades justapostas e fechadas sobre si: ela nasce e existe por um fato de comunicação de pessoas, da sintonia de afetos, de projetos compartilhados e de esforços somados; são pessoas que fazem viver e se completam num processo essencial de comunicação, que nem sempre é verbal.
O papa Francisco fala a importância e necessidade dessa comunicação vital na sua Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações, celebrado na Igreja no dia 17 de maio próximo: na família aprendemos a comunicar. A criança comunica ainda no ventre da mãe, com os afetos que se transmitem mesmo antes do nascimento. No seio da família, acontece a interação, a acolhida, a reciprocidade e o confronto com as diferenças; aprendem-se as linguagens verbais e simbólicas. Na família também se transmitem os códigos de valores que orientam a vida inteira e ajudam a decifrar os muitos sinais e mensagens que a existência vai propondo.
A família é fruto da comunicação e, ao mesmo tempo, padrão de comunicação. Mas ela corre hoje o risco de se tornar vítima dos novos e poderosos recursos de comunicação. Pode acontecer que os membros da família reunidos ao redor da mesa, ou na sala de estar, já não conversam nem se comunicam de pessoa a pessoa: cada qual navega distante pelas vias da Internet e, quem sabe, procura algum interlocutor invisível ou imaginário, sem mais conseguir sintonizar com quem está a seu lado, fechando-se cada vez mais sobre si mesmo…
Não é sintomático que o casamento e a família começam a se deteriorar quando a boa comunicação de pessoa a pessoa deixa de existir? Nada contra esses fantásticos recursos técnicos: tudo depende do uso que deles fazemos, para que favoreçam a aproximação das pessoas, e não promovam seu isolamento. Que tal, menos internet e mais conversa nos encontros familiares? O dia das mães poderia ser um dessas ocasiões de intensa comunicação de pessoas, que na vida em família.
Cardeal Odilo Pedro Scherer, Arcebispo de São Paulo (SP) e Presidente do Regional Sul 1 da CNBB