Dom Ricardo Hoepers
Bispo do Rio Grande/RS
Presidente da Comissão Vida e Família da CNBB
2021 inicia com um cenário em descompasso. Passamos um ano inteiro em vigilância, tentando salvar vidas, diante de uma pandemia que assolou e continua a amedrontar e pressionar todos os sistemas de saúde. Cientistas do mundo inteiro correndo incansavelmente para aprimorar e qualificar vacinas que possam imunizar o mais rápido possível, especialmente os mais vulneráveis. Comunidades, grupos religiosos, sociedade civil organizada, todos empenhados, com iniciativas de solidariedade para dar conta da fome que retorna com intensidade, junto com o aumento da pobreza e da miséria. Uma grande maioria lutando pela vida! Mas, ainda temos um grupo desconexo, em descompasso, que vibra com a morte. O Papa São João Paulo II foi muito enfático na sempre e atualizada Encíclica Evangelium vitae: “há uma luta dramática entre a cultura da morte e cultura da vida” (EV 50).
O tema do aborto entrou em pauta, no final do ano passado, na Argentina, e agora no início desse ano na Coréia do Sul. O Chile começa a debater o assunto com mais intensidade. O descompasso dos países que, em plena pandemia, aproveitam a crise para fazer populismos partidários ou aprovar pautas que precisariam de mais debate, é no mínimo uma trapaça contra a
democracia. No entanto, o tema do aborto é muito mais complexo do que imaginamos.
O aborto é um tema muito sério, pois estamos falando do descarte de vidas humanas. A aprovação do aborto como um “direito”, é um sinal claro, da instrumentalização e obsessão ideológica por um tema que, na sua raiz, é perverso: negar o direito fundamental à vida é destruir todos os demais direitos.
A embriologia, o estudo da organogênese, a tecnologia que permite acompanhar cada passo do desenvolvimento de uma criança, durante a gestação, no ventre materno, é uma inegável conquista da humanidade. Mas, a falsa política e o pseudodireito conseguiram voltar a idade das
pedras, e estão ficando especializados no negacionismo das verdades científicas mais claras, para manter seu ideário inescrupuloso de interesse pelo poder e pelo dinheiro.
A falsa política cria um mundo paralelo para poder subsistir, mesmo que saiba do erro, da manipulação, da corrupção, continua afirmando o improvável, o pior, o irracional, o nocivo para manter sua posição ideológica, e se torna, assim, perversa.
E o pseudodireito tomou sobre si a ilusão de que tem respostas para tudo, e “pagando bem” justifica e defende as maiores atrocidades. O pseudo direito ficou refém do mundo econômico e tornou a sociedade escrava de seus próprios vícios.
Em pleno século XXI, ainda temos pessoas que negam a um embrião humano em desenvolvimento seu status de dignidade e direitos. Negam que um ser humano tenha status de humano. Isto significa que são negacionistas.
Talvez porque ainda acreditam em quimeras ou em fábulas! Talvez acreditam que o ser humano tem um processo diferenciado de desenvolvimento ou algo parecido que, só depois da 12ª semana ele cria validade. É, no mínimo, um produto estranho: começa sem validade e, depois, num passe de mágica, cria validade. Os grandes cientistas que promoveram os estudos da embriologia e do desenvolvimento fetal são afrontados com esta estranha interpretação de um “direito” que valida a vida somente no primeiro segundo, da décima segunda semana, ou décima terceira, ou décima quarta, sem nunca ter um consenso. Parece que isso não importa, pois o que se quer é aprovar o aborto com pompa e circunstância. Devem ter estudado muito para chegar nessa conclusão! E depois são os religiosos que são fanáticos e obscurantistas simplesmente porque querem defender a vida desde o seu começo, no compasso que é próprio. Toda música tem um começo, uma nota inicial, que dá o start para a bela melodia que virá. Mas para alguns, a música da vida e seus compassos iniciais estão proibidos de ser tocados: isto sim é obscurantismo.
São tantos descompassos que é difícil de enumerar todos. Mas, em 2018 o Supremo Tribunal Federal decidia que o desconhecimento da gravidez de empregada pelo empregador, no momento da demissão, não afasta o direito à estabilidade ou à indenização correspondente (Recurso Extraordinário 629053). A Suprema Corte, com isso, garantiu que há vida no ventre
materno, mesmo se a mãe desconhece o fato. Depois, com a devida comprovação, ela pode exigir seus direitos. Neste caso não se diz que é só a partir da 12ª, 13ª ou seja lá qual for a semana que valida uma gravidez. Mais do que justa essa prerrogativa que reconhece o status de uma gestação
desde a concepção: “trata-se de um direito instrumental à proteção da maternidade e contra a dispensa da gestante, que tem como titulares a empregada e a criança. Sendo a proteção à maternidade um direito individual irrenunciável, o desconhecimento da gravidez por parte da
trabalhadora ou a ausência de sua comunicação ao empregador, não pode prejudicar a gestante”, argumenta o ministro relator da causa.
Por outro lado, está nas mãos do mesmo STF a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 que interpreta de modo diferente o início da vida e desvincula a proteção da criança, ou melhor, simplesmente rechaça, exclui a criança, permitindo o aborto até
a 12ª semana. Esse é o descompasso da sociedade atual. Dependendo da situação o ser humano tem validade, dependendo da situação o ser humano não vale nada! A juridicização da vida está levando a uma desfiguração do conceito de ser humano, acirrando ainda mais, uma profunda crise
antropológica.
A questão do aborto está sempre presente, nos questionando, exigindo uma resposta. É verdade que mulheres morrem em clínicas clandestinas, têm sequelas pós-aborto, ficam traumatizadas e sofrem dramas profundos. E muitas outras realidades que as mulheres passam, e de modo algum, podemos negar. O fato é que, para todas essas questões têm alternativas. A
necessidade de leis e políticas públicas que ofereçam suporte e apoio, como no caso acima citado, em que a mãe trabalhadora pode ser reintegrada ou receber indenização por estabilidade. Com vontade política, uma verdadeira política em vista do bem comum, poder-se-ia salvaguardar a
vida de muitas mães e de muitas crianças. Essa é a cultura da vida que acreditamos, onde diante do predomínio da cultura da morte, escolhemos outras alternativas para que a vida possa vencer.
Porém, achar que todas essas questões irão se resolver aprovando o aborto como um “direito” é uma ilusão e uma mentira que não têm fundamento nenhum, nem na história, nem na ciência e nem em lugar algum. Toda lei que negar o direito fundamental à vida será sempre uma lei iníqua, nociva e irracional, perversa, pois está negando uma verdade da qual ninguém poderá escapar diante de sua própria consciência: escolher o que é bom, justo e verdadeiro.
Argentina, Coreia do Sul e agora Chile estão se unindo neste descompasso político e jurídico com outras nações que já aprovaram o aborto e não resolveram a questão da proteção da mulher. No Brasil, a pauta está no STF com a ADPF 442, o que parece um descompasso maior, pois estará sendo julgado que a defesa, o cuidado e a salvaguarda de uma criança no ventre de sua mãe não é um preceito fundamental, e interromper um processo de desenvolvimento de uma vida é um “direito” do mais forte sobre o mais fraco. Isso é injusto, irracional e criminoso!
É bom estarmos atentos para o caminho que queremos construir para as futuras gerações, no Brasil. Podemos dar um exemplo ao mundo de que existe ainda esperança boa política, com reta razão e compromisso com a vida. Está em nossas mãos fazer essa escolha: uma cultura da morte, que mente, manipula, corrompe, mata ou, uma cultura da vida, que busca a verdade, respeita, cuida, protege e salvaguarda a vida desde a concepção até seu fim natural.
Rio Grande, 10 de janeiro de 2020.